NA PRAÇA PÚBLICA:
Geralmente prefiro não comentar processos judiciais em curso ou colegas no exercício da sua actividade mas o que tenho assistido de há 24 horas para cá tem-me deixado baralhado.
Seis arguidos foram condenados (a única absolvida irá seguramente votar Sócrates até ao fim da vida, em agradecimento pela alteração das normas) em Tribunal por um colectivo de juízes na sequência de um demorado julgamento através do qual puderam apresentar toda a defesa que queriam, centenas de testemunhas de defesa, milhares de documentos, repetindo perícias às vítimas, com toda a liberdade e garantias que o Processo Penal Português confere aos arguidos em desfavor das vítimas. Enfim, segundo as regras.
Das decisões de que não se gosta ou com as quais se não concorda recorre-se. Contudo, no momento imediatamente a seguir à leitura da sentença, vi alguns dos meus colegas a proferirem afirmações que, no mínimo, não são muito respeitosas para o colectivo dos juízes. Embora discorde da atitude sou capaz de perceber a sua irritação e postura mas já compreendo menos bem que advogados que não tenham tido intervenção no processo e não o conheçam venham dizer que as penas aplicadas são exageradas. Advogados que respeito e de quem gosto muito.
Vi, depois, com igual espanto, os arguidos a calcorrearem as televisões, a desfazerem-se em entrevistas, conferências de imprensa, a opinarem em todo o lado, alguns até criando sites e divulgando na net as partes do processo que lhes interessam (espero que sem revelar os nomes das vítimas, o que seria uma atitude miserável).
Ouvi coisas extraordinárias, como ameças incompreensíveis e uma alusão discreta de que a Casa Pia tinha muitos imóveis (que interessa isso?), ou de que a culpa de tudo isto adviria do facto de nesses colégios se juntarem alunos de classes altas e baixas, fomentando nos últimos vontade de possuirem os mesmos bens dos primeiros (e quê? Obtê-los pela prostituição? Pagos pelos ‘utilizadores’?)
Perante esta rebaldaria, fico com a impressão de que os próprios querem discutir a coisa na praça pública e que isso é perfeitamente legítimo. Então seja.
Uma ressalva. Não conheço o processo nem nenhum dos intervenientes. Não conheço as peças (processuais, entenda-se), o acórdão, ou sequer os fundamentos. Não sei se a decisão é boa ou má, exagerada ou leve, e muito menos se os arguidos são culpados ou não.
Nada mais sei do que aquilo que vem na comunicação social e que agora os arguidos pretendem discutir na praça pública.
Quando se discute na praça pública é preciso frisar bem aquilo que está em causa. Aqui é a abjecta violação continuada por seres miseráveis de diversas crianças que foram entregues ao Estado. O mesmo Estado que estranhamente se permite ponderar tirar os gordinhos dos filhos aos pais menos atentos à sua dieta. Para quê? Para os entregar graciosamente aos que têm por estranha dieta violar os mais anafadínhos?
Aquilo que aquelas e muitas outras crianças sofreram é inimaginável para a maioria dos portugueses mas a maioria dos portugueses sabe bem que se tamanha canalhice fosse feita sobre os seus filhos a justiça seria feita pelas suas próprias mãos. E era provavelmente muito mais rápida.
Nós não sabemos se aqueles condenados são culpados,imaginamos até que há muitos mais responsáveis, mas sabemos bem que existem inúmeras vítimas, inúmeras crianças indefesas que, entregues ao Estado, entregues a nós, foram miseravelmente violadas durante décadas.
Dizem uns quantos que mentiram. Mas que interesse teriam essas crianças em mentir? Não há dúvida de que foram molestadas, violadas, massacradas, que razão existiria para denunciarem – não os verdadeiros violadores mas – outras pessoas?
Essas crianças não têm cara, não as conhecemos, não sabemos quem são porque não aparecem na televisão, não conhecem gente importante, mas sabemos que são crianças, que eram crianças, que foram crianças até serem abusadas pela canalha. Imaginemos então que eram as nossas.
Nós não sabemos se aqueles condenados são culpados, dizia eu, mas os juízes do colectivo sabem-no muito bem. Como advogado, já tive de me deparar com vários erros judicais, erradas apreciações, diferentes interpretações. Dos Magistrados Judiciais ou do Ministério Público. Acontece. Errar é humano. Há diferentes interpretações. Mas como observador custa-me a crer que num caso tão badalado, tão mediático, tão falado, os investigadores, as autoridades policiais, o Ministério Público ou os três juízes que analisaram o caso tão atentamente se tenham todos enganado.
De resto, as críticas que tenho ouvido aos magistrados judiciais não me convencem. Por duas vezes aqueles sugeriram ler o acórdão na íntegra. Por duas vezes foi aceite que isso não fosse feito. Louvo até a sua atitude (a dos magistrados): sem pretender denegrir os funcionários judiciais ou outros intervenientes, admito que se tivessem divulgado o cd com o acórdão para cópia ou para impressão para oferecer aos ilustres advogados, a totalidade do acórdão estaria na comunicação social muito antes de se ter concluído a sua leitura. Tenho a certeza de que aquele acórdão não foi feito sequer em computador integrado na rede do Tribunal. Por isso ninguém soube dele antes de ser lido. Numa altura em que todos criticam essa entidade abstracta a que denominam “Justiça” (esquecendo-se de que esta mais não é do que aquilo que o legislador pretende), é de louvar a manutenção de um segredo.
Sempre segundo a comunicação social, temos um embaixador com um historial penoso, um empregado e antigo aluno (e vítima) da Casa Pia que confessa os crimes, um médico dos miúdos da Casa Pia que, segundo se diz, atestava a qualidade e higiene ‘do produto’, para além de tudo o mais que foi provado, um vice-provedor da Casa Pia que, no mínimo, tudo deveria conhecer, um apresentador da televisão que já há vários anos era referenciado neste tipo de coisas, amigo de um tal fulano também referenciado nestas actividades, que entretanto fugiu às autoridades e terá desaparecido do país, e um estranho personagem que estranhamente aparece em cena a defender o principal arguido, até ser substituído e constituído igualmente como arguido. Passam-se anos em julgamento, a analisar o caso, e os três juízes estarão enganados? Relativamente a todos os condenados? – É possível, mas não é impossível pensar o contrário.
No meio deste frenesi que vai pela comunicação social, amplificando as inúmeras declarações de inocência dos arguidos entretanto condenados, há silêncios que chocam e só podem deixar as pessoas perplexas. O silêncio do Governo é um deles.
Não sei bem de que Ministério depende a Casa Pia (julgo que é do Trabalho e Segurança Social), mas não aparece ninguém a fazer uma declaraçãozinha? Ou pelo menos mandar o porteiro à porta ler um comunicadozeco qualquer? A Ministra não tem nada a ver com o assunto? Não tem nada a dizer? Não nos diz, ao menos, que não tem nada a dizer? E a comunicação social não pergunta? Esqueceu-se? Não quer saber?
Passaram-se horrores com as crianças em colégios tutelados pelo Estado, na dependência do Ministério do Trabalho, e agora, que houve uma condenação judicial, a tutela assobia para o lado? Como sempre fez? E ninguém se indigna? Este país é uma choldra, realmente.
Quando nos deitamos cinco minutos a pensar neste caso deparamo-nos sempre com coisas surpreendentes e silêncios chocantes.
Não obstante os factos criminosos terem ficado provados, uma arguida viu-se salva da condenação por via daquela bizarríssima alteração legislativa.
Num país civilizado com uma comunicação social decente, o assunto não morreria por aqui. Existe uma real situação concreta, relativa a crimes gravíssimos e hediondos, que se aproveita de uma inusitada alteração legal. Se não o tivesse querido fazer antes, era pelo menos agora altura da comunicação social investigar pormenorizadamente como se chegou a este estado de coisas com este tipo de crimes, começando por dissecar o processo legislativo. Quem o promoveu, porquê, para quê, como, com que argumentos, com que fundamentos, com que intenções, finalidades, propósitos.
Era o mínimo que um país civilizado exigiria.
Mas, infelizmente, como dizia há dias Felícia Cabrita, em Portugal não existe jornalismo nem jornalistas de investigação dignos desse nome. Ou existem muito poucos. E julgar Portugal um país civilizado...
In: http://marsalgado.blogspot.com/
Geralmente prefiro não comentar processos judiciais em curso ou colegas no exercício da sua actividade mas o que tenho assistido de há 24 horas para cá tem-me deixado baralhado.
Seis arguidos foram condenados (a única absolvida irá seguramente votar Sócrates até ao fim da vida, em agradecimento pela alteração das normas) em Tribunal por um colectivo de juízes na sequência de um demorado julgamento através do qual puderam apresentar toda a defesa que queriam, centenas de testemunhas de defesa, milhares de documentos, repetindo perícias às vítimas, com toda a liberdade e garantias que o Processo Penal Português confere aos arguidos em desfavor das vítimas. Enfim, segundo as regras.
Das decisões de que não se gosta ou com as quais se não concorda recorre-se. Contudo, no momento imediatamente a seguir à leitura da sentença, vi alguns dos meus colegas a proferirem afirmações que, no mínimo, não são muito respeitosas para o colectivo dos juízes. Embora discorde da atitude sou capaz de perceber a sua irritação e postura mas já compreendo menos bem que advogados que não tenham tido intervenção no processo e não o conheçam venham dizer que as penas aplicadas são exageradas. Advogados que respeito e de quem gosto muito.
Vi, depois, com igual espanto, os arguidos a calcorrearem as televisões, a desfazerem-se em entrevistas, conferências de imprensa, a opinarem em todo o lado, alguns até criando sites e divulgando na net as partes do processo que lhes interessam (espero que sem revelar os nomes das vítimas, o que seria uma atitude miserável).
Ouvi coisas extraordinárias, como ameças incompreensíveis e uma alusão discreta de que a Casa Pia tinha muitos imóveis (que interessa isso?), ou de que a culpa de tudo isto adviria do facto de nesses colégios se juntarem alunos de classes altas e baixas, fomentando nos últimos vontade de possuirem os mesmos bens dos primeiros (e quê? Obtê-los pela prostituição? Pagos pelos ‘utilizadores’?)
Perante esta rebaldaria, fico com a impressão de que os próprios querem discutir a coisa na praça pública e que isso é perfeitamente legítimo. Então seja.
Uma ressalva. Não conheço o processo nem nenhum dos intervenientes. Não conheço as peças (processuais, entenda-se), o acórdão, ou sequer os fundamentos. Não sei se a decisão é boa ou má, exagerada ou leve, e muito menos se os arguidos são culpados ou não.
Nada mais sei do que aquilo que vem na comunicação social e que agora os arguidos pretendem discutir na praça pública.
Quando se discute na praça pública é preciso frisar bem aquilo que está em causa. Aqui é a abjecta violação continuada por seres miseráveis de diversas crianças que foram entregues ao Estado. O mesmo Estado que estranhamente se permite ponderar tirar os gordinhos dos filhos aos pais menos atentos à sua dieta. Para quê? Para os entregar graciosamente aos que têm por estranha dieta violar os mais anafadínhos?
Aquilo que aquelas e muitas outras crianças sofreram é inimaginável para a maioria dos portugueses mas a maioria dos portugueses sabe bem que se tamanha canalhice fosse feita sobre os seus filhos a justiça seria feita pelas suas próprias mãos. E era provavelmente muito mais rápida.
Nós não sabemos se aqueles condenados são culpados,imaginamos até que há muitos mais responsáveis, mas sabemos bem que existem inúmeras vítimas, inúmeras crianças indefesas que, entregues ao Estado, entregues a nós, foram miseravelmente violadas durante décadas.
Dizem uns quantos que mentiram. Mas que interesse teriam essas crianças em mentir? Não há dúvida de que foram molestadas, violadas, massacradas, que razão existiria para denunciarem – não os verdadeiros violadores mas – outras pessoas?
Essas crianças não têm cara, não as conhecemos, não sabemos quem são porque não aparecem na televisão, não conhecem gente importante, mas sabemos que são crianças, que eram crianças, que foram crianças até serem abusadas pela canalha. Imaginemos então que eram as nossas.
Nós não sabemos se aqueles condenados são culpados, dizia eu, mas os juízes do colectivo sabem-no muito bem. Como advogado, já tive de me deparar com vários erros judicais, erradas apreciações, diferentes interpretações. Dos Magistrados Judiciais ou do Ministério Público. Acontece. Errar é humano. Há diferentes interpretações. Mas como observador custa-me a crer que num caso tão badalado, tão mediático, tão falado, os investigadores, as autoridades policiais, o Ministério Público ou os três juízes que analisaram o caso tão atentamente se tenham todos enganado.
De resto, as críticas que tenho ouvido aos magistrados judiciais não me convencem. Por duas vezes aqueles sugeriram ler o acórdão na íntegra. Por duas vezes foi aceite que isso não fosse feito. Louvo até a sua atitude (a dos magistrados): sem pretender denegrir os funcionários judiciais ou outros intervenientes, admito que se tivessem divulgado o cd com o acórdão para cópia ou para impressão para oferecer aos ilustres advogados, a totalidade do acórdão estaria na comunicação social muito antes de se ter concluído a sua leitura. Tenho a certeza de que aquele acórdão não foi feito sequer em computador integrado na rede do Tribunal. Por isso ninguém soube dele antes de ser lido. Numa altura em que todos criticam essa entidade abstracta a que denominam “Justiça” (esquecendo-se de que esta mais não é do que aquilo que o legislador pretende), é de louvar a manutenção de um segredo.
Sempre segundo a comunicação social, temos um embaixador com um historial penoso, um empregado e antigo aluno (e vítima) da Casa Pia que confessa os crimes, um médico dos miúdos da Casa Pia que, segundo se diz, atestava a qualidade e higiene ‘do produto’, para além de tudo o mais que foi provado, um vice-provedor da Casa Pia que, no mínimo, tudo deveria conhecer, um apresentador da televisão que já há vários anos era referenciado neste tipo de coisas, amigo de um tal fulano também referenciado nestas actividades, que entretanto fugiu às autoridades e terá desaparecido do país, e um estranho personagem que estranhamente aparece em cena a defender o principal arguido, até ser substituído e constituído igualmente como arguido. Passam-se anos em julgamento, a analisar o caso, e os três juízes estarão enganados? Relativamente a todos os condenados? – É possível, mas não é impossível pensar o contrário.
No meio deste frenesi que vai pela comunicação social, amplificando as inúmeras declarações de inocência dos arguidos entretanto condenados, há silêncios que chocam e só podem deixar as pessoas perplexas. O silêncio do Governo é um deles.
Não sei bem de que Ministério depende a Casa Pia (julgo que é do Trabalho e Segurança Social), mas não aparece ninguém a fazer uma declaraçãozinha? Ou pelo menos mandar o porteiro à porta ler um comunicadozeco qualquer? A Ministra não tem nada a ver com o assunto? Não tem nada a dizer? Não nos diz, ao menos, que não tem nada a dizer? E a comunicação social não pergunta? Esqueceu-se? Não quer saber?
Passaram-se horrores com as crianças em colégios tutelados pelo Estado, na dependência do Ministério do Trabalho, e agora, que houve uma condenação judicial, a tutela assobia para o lado? Como sempre fez? E ninguém se indigna? Este país é uma choldra, realmente.
Quando nos deitamos cinco minutos a pensar neste caso deparamo-nos sempre com coisas surpreendentes e silêncios chocantes.
Não obstante os factos criminosos terem ficado provados, uma arguida viu-se salva da condenação por via daquela bizarríssima alteração legislativa.
Num país civilizado com uma comunicação social decente, o assunto não morreria por aqui. Existe uma real situação concreta, relativa a crimes gravíssimos e hediondos, que se aproveita de uma inusitada alteração legal. Se não o tivesse querido fazer antes, era pelo menos agora altura da comunicação social investigar pormenorizadamente como se chegou a este estado de coisas com este tipo de crimes, começando por dissecar o processo legislativo. Quem o promoveu, porquê, para quê, como, com que argumentos, com que fundamentos, com que intenções, finalidades, propósitos.
Era o mínimo que um país civilizado exigiria.
Mas, infelizmente, como dizia há dias Felícia Cabrita, em Portugal não existe jornalismo nem jornalistas de investigação dignos desse nome. Ou existem muito poucos. E julgar Portugal um país civilizado...
In: http://marsalgado.blogspot.com/
2 comentários:
Está tudo 'programado' : resta agora e antes de outros desenvolvimentos legais, saber até que ponto é que a cartada do Carlos Cruz em ameaçar colocar no site dele os 200 nomes surte algum efeito.... Talvez algum desse nomes venha a 'capitular' e através da GOL - célula dos magistrados, reduza ainda mais a pena ao pedófilo Cruz. O Marinho Pires já deu o pontapé de saída.
E entretanto...
http://aeiou.expresso.pt/professora-de-braga-lidera-assinaturas-a-favor-de=f603317
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